PoNTI. Programa.
Estrutura. Modo.
Em 1997 — recuperando das arcas
de uma memória recente o conceito que havia sido preenchido pelo FIT,
notavelmente dirigido por António Lagarto na primeira metade da década de 90, e
encontrando uma feliz consonância com o
desejo de internacionalização que então se tornara essencial ao projecto do
Teatro Nacional S. João —, o Ministério da Cultura propôs-se encontrar os meios
para a criação de um festival internacional de Teatro.
Insistindo numa ideia que, por
tão óbvia, fica muitas vezes secundarizada no argumentário da política cultural
— a de que não há desenvolvimento nacional ou regional que possa ignorar um
investimento decisivo, bem estruturado e consequente nos domínios de produção e
exibição artística — foi possível concitar o apoio essencial do Fundo Europeu
para o Desenvolvimento Regional (FEDER) e assim criar condições para um
trabalho tranquilo na evolução do conceito e na afirmação do festival.
Com a compreensão do projecto e
a consequente adesão da Câmara Municipal do Porto e firmada a âncora
organizativa num modo de fazer ambiciosamente profissional que então se
afirmava já de modo estruturado no TNSJ, foi então possível fazer nascer o PoNTI – Porto. Natal. Teatro. Internacional,
que veio a conhecer a sua abertura oficial no dia 3 de Dezembro de 1997, com a
exibição no Teatro Rivoli de Measure for
Measure, de William Shakespeare, encenado pelo francês Stéphane
Braunschweig.
O contexto era, então, de
frenética emergência na cidade do Porto de novos criadores, novos grupos e
companhias na sua maioria muito jovens, reféns sem culpa de um longo período
português de descontinuação da tradição teatral, ao longo do qual as ideias de
exploração sistemática de repertórios e de consolidação das condições materiais
de trabalho foram amplamente ignoradas, principalmente fora de Lisboa.
Não admira portanto que a
primeira ideia a tornar-se incontornável e a assumir a dignidade de programa
tenha sido a intensificação e o aprofundamento do conhecimento da história —
remota ou recente — da prática teatral, tanto como das expressões
contemporâneas desse conceito, nunca difuso mas sempre reinventado, que é o
Teatro. Apontámos assim para um duplo caminho: contribuir para tornar regular a
circulação pelo Porto dos criadores mais marcantes da cena internacional, em
particular aqueles cujo trabalho se orienta para a exploração do grande
património dramatúrgico; ampliar o conhecimento de outros fazeres
contemporâneos que se distinguem pela prioridade da experimentação cénica sobre
a herança textual.
O aparente paradoxo contido
neste duplo objectivo haveria aliás de marcar muito pela positiva todo o
conceito do festival, ao potenciar um programa feito de tensões, de diálogos
inesperados. O cruzamento interdisciplinar — fosse através da contaminação das
palavras de Vieira pela música de Gismonti, sob a direcção de Ricardo Pais, ou
tivesse como veículo a invasão do Teatro pela pintura e pelas manifestações
mais contemporâneas das artes plásticas, característica do trabalho da Socíetas
Raffaello Sanzio —, o confronto entre a produção nacional e estrangeira, a
exploração de diferenças de escala — cujo mais perfeito exemplo foi o arranque
da edição de 1999, com a simplicidade cénica e a excelência interpretativa
contidas em Voices, uma recriação de
Pasolini pelo Theatergroep Hollandia, a seguir-se à sumptuosidade compositiva
de Robert Wilson —, tornaram-se marcas distintivas de um festival que gosta de
pensar que o menor dos seus momentos procura sempre o maior dos impactos —
reintegradores ou transgressivos — num público atento e progressivamente mais
conhecedor.
Atento à produção internacional,
promotor regular da inserção de criadores estrangeiros nas suas fichas
artísticas — não é difícil encontrar exemplos, desde o caso mais evidente e mediatizado
das encenações de Giorgio Barberio Corsetti, até à participação de criadores
como a figurinista Vin Burnham, os desenhadores de luz Dominique Bruguière ou
Pierre Zach, o videasta Fabio Iaquone ou o mestre de lutas William Hobbes, não
procurando ser exaustivo nesta enunciação —, o Teatro Nacional S. João não
poderia deixar de procurar nessa via de contiguidade o essencial da programação
do PoNTI. Não ignorando o verdadeiro mercado internacional do Teatro, onde
existem milhares de produções à espera de serem compradas, o privilégio foi
sempre outorgado ao desenvolvimento de uma relação artística, pessoal, único
meio de manter relações de longo prazo, com uma proficuidade cultural pelo
menos equivalente ao investimento efectuado.
Esta noção de ‘valor acrescentado’
— uso esta terminologia para não fugir ao discurso economicista que sempre quer
opor-se ao desenvolvimento de condições de estruturação do tecido artístico de
uma comunidade — implica necessariamente a criação de condições de base
próximas da excelência, que orientámos em três sentidos essenciais: a adequação
real da estrutura organizativa e técnica à complexidade da tarefa que nos
propúnhamos; a irrepreensibilidade do acolhimento às companhias; o
estabelecimento de laços de comunicação com os públicos capazes de proporcionar
não apenas a sua vinda aos espectáculos, mas também uma compreensão de fundo da
importância do festival e de cada um dos seus momentos na construção de um
conceito de cidade em que possamos todos rever-nos.
A primeira destas preocupações
conduziu à consciência de que, para além da segurança que à partida implicava a
inserção do festival na estrutura do TNSJ, seria necessário constituir uma
equipa própria que permitisse que toda a programação fosse coerentemente
articulada, não apenas num plano artístico, mas de acordo com as condições
materiais efectivas da sua realização. Assim, para lá da Direcção Executiva
tripartida, assegurada por um responsável pela programação, comunicação e
imagem, um outro pela direcção de produção e controlo operacional e um terceiro
pela direcção técnica, foi dimensionada uma equipa capaz de responder ao
trabalho simultâneo em quase uma dezena de espaços diferente e a um ritmo de
estreias diárias ao longo de três semanas. Posso referir-me à equipa técnica em
sentido estrito, relativamente à qual procurámos uma estratégia de contágio
entre profissionais com história e técnicos locais, em experiência de formação.
Mas também à equipa de acolhimento que enfrenta, edição após edição, um
corropio logístico assinalável, ou à equipa de comunicação, reforçada apenas no
que diz respeito ao planeamento de meios.
A adesão do público ao festival
— quase 80% de taxa de ocupação na primeira edição e bem mais de 90% em 1999 —
pode, espero, aferir da qualidade do esforço desenvolvido na área da
comunicação. A barreira da periferia — a maioria dos jornalistas da área
cultural dos órgãos de comunicação ditos nacionais estão sedeados em Lisboa e
encontram normalmente muitas dificuldades na deslocação —, aliada ao risco que
a novidade de uma iniciativa a esta escala na cidade do Porto implicava, em
tempos em que continua a afirmar-se — felizmente cada vez com menos razão — que
os teatros estão vazios, foram os estímulos ao desenvolvimento de uma
estratégia que, ao mesmo tempo que aposta na disseminação do conceito e na
notoriedade do nome do festival, não conhece públicos sem rosto e procura em
cada espectador um interlocutor esclarecido. Especialmente importante nesta
área terá sido o trabalho de proximidade desenvolvido com escolas dos diversos
graus de ensino — com um êxito assinalável para a criação nas universidades do
‘correspondente PoNTI’ —, com as Câmaras Municipais da Área Metropolitana do
Porto, mas também com empresas, associações profissionais… Outro dos factores
críticos para o sucesso foi, sem dúvida, a vontade de popularização e
desectarização do universo de pessoas atinigidas pelo festival, de que é
exemplo a legendagem de todos os espectáculos de língua estrangeira e,
principalmente, a viabilização financeira à frequência intensa do festival
protagonizada pelo ‘Passaporte PoNTI’.
Entrado definitivamente no
calendário da cidade e do país, o PoNTI enfrenta em 2001, ano de Capital
Europeia de Cultura, um novo e maior desafio. Após um momento inicial em que
esta iniciativa pareceu ir ignorar a realidade da cidade e das suas estruturas
de produção e exibição artística, criando um chapéu de programadores com uma
relação estruturalmente autista relativamente à realidades quotidianas do fazer
artístico na cidade, a decisão do Ministério da Cultura de atribuir parte do
financiamento de programação directamente às instituições que no terreno
trabalham esta realidade veio reabilitar outra possibilidade: a de todo este
programa servir efectivamente a sedimentação de um trabalho que, nas artes do
palco, tem muitos protagonistas — do TNSJ ao Rivoli, às escolas profissionais
ou superior, ou essencialmente às companhias e criadores, emergentes ou não — e
assumiu nestes últimos seis anos uma dimensão exaltante.
O financiamento acrescido que o
ano de Capital Europeia significa, se serve a criação de um programa mais
extenso e mais distribuído por todo o ano, deve também ser uma ocasião para —
não esquecendo o carácter excepcional do evento e o retorno à normalidade que
se lhe seguirá — reforçar a identidade do festival e iniciar a exploração de
caminhos presentes em intenção dese o primeiro momento, mas que não tinha sido
ainda possível desenvolver.
Nesse sentido, desenvolvemos o
conceito de ‘PoNTI todo o ano’ sustentado num trabalho de programação em rede,
verdadeiramente potenciador das capacidades e vontades de todas as suas partes
integrantes: o TNSJ, na sua vocação originária de casa produtora de referência,
mas também desdobrado nos seus sub-programas DRAMAT – Centro de Dramaturgias
Contemporâneas do Porto e PoNTI, o Auditório Nacional Carlos Alberto e o
Balleteatro. A vertente formativa é um dos exemplos do conceito de festival que
gostaríamos de deixar afirmado para além de 2001: não apenas a formação
artística, mas também das especialidades técnico-artísticas ou na área da
administração/produção, ou ainda do marketing cultural. O reforço das
estruturas endógenas, como a criação de um serviço descentralizado de
informação e documentação ou o início sustentado de criação de oficinas
permanentes de adereços e guarda-roupa, é outra das linhas essenciais de
trabalho que desenvolvemos. Mais uma, será a continuação do trabalho sobre as
dramaturgias contemporâneas e, especialmente, sobre o crescimento e afirmação
de uma escrita nacional e a sua articulação com a vocação de apoio às
companhias locais que o ANCA assumiu. Outra é a intensificação da circulação
pelo Porto de toda a criação teatral portuguesa, independentemente do seu local
de origem. Outra ainda, a rentabilização da presença de cada um dos criadores
internacionais na cidade do Porto, ‘obrigando-os’ a encetar diálogos efectivos
com os criadores locais…
Com tanta possibilidade e tanto
caminho para andar, o futuro afigura-se cansativo, mas risonho…